Blog da Pina

Postagem: Convocamos a arte: reflexões sobre o fim do mundo a partir da mostra “Era uma vez”

Publicado em 01 de novembro de 2024

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: Artistas e Exposições

Por meio da análise do pensamento cosmológico de artistas de diferentes gerações sobre o fim e possíveis recomeços do mundo, a curadoria da Pinacoteca fala sobre como operam as artes frente as questões ambientais.

Steve Mcqueen, Once Upon a Time (2022)

Em 1972, a NASA envia para o espaço sideral um arquivo com 116 imagens da “vida na Terra”. Quando a humanidade for extinta, o esperado é que os extraterrestres encontrem esses registros fotográficos, que mostram seres humanos, animais, carros, aeroportos, moléculas, arranha-céus e máquinas de lavar. Em 2016, o artista e roteirista Steve McQueen compra esses discos e produz o filme Era uma vez. Na obra, McQueen apresenta uma perspectiva nostálgica da vida no planeta ao mesmo tempo em que nos convoca a reparar em tudo o que a NASA esqueceu de colocar nas fotos: fome, guerras, destruição ambiental, conflitos religiosos.

O filme inspirou o título da exposição Era uma vez: visões do céu e da terra, que abriu no dia 25 de outubro, na Grande Galeria da Pina Contemporânea. Organizada por Ana Maria Maia, Lorraine Mendes e Pollyana Quintella, a mostra reúne trabalhos de 34 pessoas artistas de diferentes gerações que viajam no tempo e no espaço para refletir sobre o fim do mundo.

O ponto de partida

Conversei com Jochen Volz, diretor-geral da Pinacoteca, que foi o coordenador da 32ª Bienal de São Paulo, realizada entre setembro e dezembro de 2016, com o tema Incerteza Viva. À época, a discussão curatorial girava em torno da incerteza sobre questões políticas e ambientais, e se observava a ascensão do termo “Antropoceno” – utilizado para designar o impacto global das atividades humanas no planeta.

O ano de 2014 marcou o lançamento de diversos filmes e livros sobre o fim do mundo, impulsionando as discussões sobre o assunto, que hoje atingem seu ápice.

“De 2016 pra cá, tudo mudou completamente, tanto na cena artística, quanto nas perspectivas de futuro. Na época os artistas pensavam sobre o tema, hoje tudo é ainda mais incerto. A gente mal sabia que era só o início [risos]”, conta Volz.

Quase 10 anos depois da Bienal e agora com previsões assustadoras sobre as questões do nosso tempo, pedi que a curadoria nos ajudasse a refletir sobre como a arte opera frente a um cenário de crise. Muitas respostas podem ser vistas pelo público na exposição “Era uma vez”, que nos convida a conhecer o pensamento cosmológico das pessoas artistas, levando em consideração uma prerrogativa importante: o fim também carrega em si a possibilidade de concepção de novas realidades – fundamentadas em teorias queer e decoloniais. Essas teorias nos ajudam a pensar as relações por óticas que desafiam conceitos excludentes e padronizados, oposta a lógica da modernidade patriarcal, heterossexual e capitalista.

“Quando os artistas operam pelo sensível, eu comentaria que poderíamos seguir por caminhos de ‘ressignificação’, mas acho que esse termo é raso e nem sempre resolve. A questão é que a arte também não vai resolver a crise, o problema mais do que se anuncia, ele já está dado. Mas a arte também diz aquilo que é indizível, opera com alguns signos que causam uma sensibilização, traz para o sensível aquilo que se tenta esquecer, apagar”, conta a curadora Lorraine Mendes.

Tabita Rezaire, Orbit Diapason, 2021. Foto: Levi Fanan.

Novas respostas

Minhas questões também chegaram até Ana Maria Maia, curadora-chefe do museu. Para ela o papel da arte é duplo. Ao mesmo tempo em que ela nos permite fazer denúncias e olhar para a realidade com a preocupação que ela evoca, a arte é orientada a alimentar a imaginação radical, de forma que nos inspire a quebrar padrões, reinventando círculos viciosos:

 “Há muitas respostas na exposição. A primeira delas é a que está no arquivo de divulgação científica chamado Feral Atlas, que mostra como no antropoceno algumas espécies se adaptam a essa suposta crise da humanidade na Terra, e elas se multiplicam. Há, por exemplo, uma bactéria específica que se prolifera a partir do plástico. Outro exemplo é o Coronavírus, uma espécie adaptada, nociva, mas que mostra que a vida vai se adaptando e vai ampliando suas formas, o ecossistema terrestre”, conta.

O projeto Feral Atlas é uma plataforma de divulgação científica coordenada pelas antropólogas Anna L. Tsing, Jennifer Deger e Alder Keleman Saxena e pela artista Feifei Zhou. O arquivo cataloga uma série de “universos” criados por fungos, vírus e seres mutantes que surgem a partir dos impactos de grandes infraestruturas construídas pelos humanos.

Maia também encontra respostas no trabalho de Juraci Dórea, Concerto para raposas. O artista produz a partir da relação entre arte e cultura popular no sertão, olhando para o ecossistema e matéria orgânica do local.

“O Juraci pensa esse convívio de zonas urbanas com zonas rurais. Ele faz torres com esterco seco, biomassa que vem do excremento das vacas, e cria colunas que funcionam como as bases para a construção de outro mundo, de uma instalação, de um ambiente. Então a gente pode ver que os artistas também trabalham a partir da mudança dos materiais, do reinício do ciclo das coisas, inspirando a gente a pensar também em inícios, não só fins”, reflete Ana Maia.

Jochen Volz nos convida a olhar para o trabalho de Steve McQueen em comparação ao repertório ancestral indígena, imprescindível para pensarmos em novas rotas. Sueli e Ismael Maxacali, artistas indígenas que olham para a mitologia do surgimento do povo Maxacali a partir do barro, transformam a arte em um processo de criação de tradição.  

“O Steve McQueen fez um dos trabalhos que mais me comoveram, mas olhando para os trabalhos dos artistas indígenas em comparação, a gente observa que eles falam não a partir de um registro de como é a vida no planeta, mas a partir de um sentido. Eles pensam sobre os mitos e cosmovisões que dão sentido as coisas no mundo. São dois momentos interessantes de talvez capturar as conquistas da humanidade na Terra, pela seleção finita de imagens, e pela ideia de um cosmos infinito a partir de mitos de origem”, comenta Volz.  

Sueli Maxakali, Mãy Putõõy. Foto: Levi Fanan.

Os paradigmas do nosso tempo nos impelem a agir, e quem sabe, recomeçar. E mais do que nunca se ancorar em diferentes repertórios artísticos, ancestrais, sociais e políticos se mostra uma alternativa para novas formas de olhar para os problemas que se colocam, afinal há 52 anos a NASA já previa o fim. Sobre o arquivo com imagens enviado pela NASA a para o espaço, Volz opina: 

“Eu acho essa proposta de 1972 algo curioso porque parece um passado distante, mas na verdade esse documento foi mandado para o espaço para sobreviver pela gente. Ele é feito para a vida no espaço posterior a humanidade, é uma mensagem numa garrafa. E esse arquivo já está tão velho e a gente está aqui? É uma mensagem sobre o que aconteceu e penso que os indígenas nunca vão falar disso, eles vão falar sobre como tudo começou. Então é uma outra perspectiva de início e fim.” 

Pegar emprestada novas percepções de mundo com os artistas de “Era uma vez”, olhando para outras possibilidades de conexão com a natureza e espaços criados não pela violência, mas pela imaginação, pode ser uma das coisas que eu e vocês, visitantes, podemos fazer ao sair da exposição. Só para a pesquisa deste texto eu já tive muito o que pensar. Espero que vocês se sintam assim também.  

 

Quem escreveu:

Autor da Postagem: Mariana Martins

Mariana Martins é formada em jornalismo pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e pós-graduanda em História da Arte pela PUC-Minas. Atuou por alguns anos como assessora de imprensa no mercado editorial e há 2 anos está a frente da assessoria da Pinacoteca de São Paulo.

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