Blog da Pina
Postagem: Latinitudes — Confluências que levaram ao tema da 2ª edição do Festival Pina Praça
Carmen Miranda é portuguesa, o samba é de Angola, a jaca veio da Índia, e o futebol, que chegou a reboque da influência inglesa no Brasil, tem origens chinesas. O que, então, torna uma identidade nacional isolada? Não seria ela resultante de confluências, fluxos e encruzilhadas que borram fronteiras geográficas? O Brasil faz vizinhança com nove países de língua espanhola em seus 16.886 quilômetros de fronteiras, desempenhando um papel geograficamente central, de interface, trânsito e contato — porém isolado devido sermos o único país lusófono do continente. Das barreiras e borrões que se estabelecem pelas linhas politicamente desenhadas e designadas aos Estados Nações dessa América Latina, nascem constantemente mecanismos de comunicação, invenção e câmbios.
O fenômeno do portunhol, por exemplo; resultado desses contatos fronteiriços entre o português e o espanhol, essa língua não oficial, porém explorada pela literatura, antropologia e sociologia, desdobra-se em tantos dialetos ou sotaques quantos forem os turistas e clandestinos cruzando as divisas. Típico das traduções apressadas e literais — semelhantes a outras contaminações linguísticas como o “guaranhol”, o “spanglish”, o “chinglish” ou idiomas que se formam nos encontros entre colonizadores e as mais de 700 línguas originárias faladas no continente americano — o Portunhol Selvagem (DIEGUES, 2003) é um acontecimento linguístico do “entre”, algo que conecta duas coisas, uma terceira margem que vai e vem. A característica fronteiriça dessa linguagem lhe concede um modo de ser que se adapta, se cambia e se hibridiza, assim como as identidades que se transformam no mundo contemporâneo, fugindo da rigidez e dificultando qualquer tentativa de categorização.
Portanto a identidade “latina” deve ser confrontada como um conceito movediço, em constante deslocamento, refletindo o espírito de cada geração e as cosmologias políticas e sociais em vigor. É um conceito amplo e complexo que, sem o devido cuidado, pode homogeneizar ou apagar a riquíssima experiência cultural de comunidades e identidades que partilham, transformam e se modificam nesse território. Por outro lado, a busca por um conceito que celebre e unifique a riquíssima gama experiência latina, nasce como posicionamento político que se contrapõe ao imperialismo dos EUA e de países da Europa.
Filme OQ XIMTALI de Manuel Chavajay, parte da programação do Cine Praça (vídeos ao ar livre no Festival Pina Praça: Latinitudes)
Identidade continental
Apesar do desafio, o exercício de nos colocarmos lado a lado com nossos hermanos latinos, latinas e latines reflete o desejo de estabelecer denominadores comuns que contribuam para a criação de uma identidade continental, que nos aproxime ou que organize as experiências culturais, históricas, políticas e identitárias que partilhamos. Pois sim, é inegável que há um repertório em comum:
fomos geograficamente definidos a partir de uma violenta invasão de países europeus; estes territórios foram — e continuam sendo — explorados por seus recursos naturais; as sociedades e cidades latino-americanas foram construídas sobre a exploração da mão de obra escravizada — negra e indígena; e nossa população foi majoritariamente formada por pessoas “de fora”.
Este fato inegável imprime a marca da miscigenação não apenas de seu povo — como resultado de um projeto político de embranquecimento e apagamento identidades originárias e negras — mas também expressadas nos diversos sincretismos religiosos e culturais.
Performance Mirroring Lengger – Gallo Galinh, de Elyla (Nicarágua), que se apresenta no Pina Praça 2025.
Das confluências entre as tradições dos povos originários e aqueles que vieram de outros continentes — africanos, europeus ou grupos migratórios mais modernos — a América Latina pulsa uma riqueza cultural exuberante, presente nas festividades, nas crenças, nas artes e nas formas de expressão. As práticas comunitárias, as cosmovisões e a sabedoria ancestral das milhares de etnias que aqui viviam, e ainda vivem, ou deram origem a um repertório multifacetado de manifestações vivas, que se somam e se transformam no tempo e no encontro de uma cultura com a outra, ou que se manifestam em segredo, como posicionamento de luta e resistência.
A festa, o ritual, a relação entre o sagrado e o profano são tecnologias passadas de gerações e gerações, expressadas por meio da dança, do canto e do corpo, garantindo estratégias de sobrevivência e auto invenção em resposta viva às dificuldades e violências comuns dessa experiência. Reinventando-se no tempo, permeando e rompendo circuitos e fronteiras geográficas, essas manifestações se transformam e ganham acentos e sotaques.
Nascendo das brechas possíveis e com liberdade para reinvenção, as diversas existências e identidades desses corpos fronteiriços se tornam ferramentas constante de retomadas para afirmar seus lugares de origem e circularem com fluidez identitária no mundo hiper conectado e globalizado que vivemos.
O Festival Pina Praça 2025

Festival Pina Praça 2024. Show de Alessandra Leão. Foto: Levi Fanan.
Pensando em acolher e escutar essa diversidade de sotaques que traduzem ou decodificam experiências singulares das tantas diásporas e deslocamentos, a Pinacoteca realiza o segundo Festival Pina Praça, trazendo a questão das latinidades como temática da edição.
Compreendendo a vizinhança do museu com o Bom Retiro, bairro com presença expressiva de imigrantes da Bolívia, Peru – entre outros — , o Pina Praça apresenta uma programação cultural híbrida, que reúne cinema, música, performance, feira criativa e oficinas para ocupar os espaços de seu novo edifício Pina Contemporânea. Com essa e outras iniciativas, a Pinacoteca não cria apenas um Festival, mas a cultura de tornar o museu um lugar de encontro e pertencimento, refletindo e afirmando diálogos mais próximos com a vizinhança, a cidade e a sociedade.
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Confira a programação completa do Festival Pina Praça: Latinitutes aqui na página do evento.
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Quem escreveu:
Autor da Postagem: Clarissa Ximenes
Curadora, produtora e pesquisadora, Clarissa é pós-graduada em Gestão em poéticas contemporâneas: Da ampliação do repertório à formação de equipes colaborativas (Itaú Cultural, 2020), em Produção Cultural (CELACC/USP, 2015) e formada em licenciatura e bacharelado em Artes Visuais na UNESP (2013). Além de fundadora do BANANAL, Clarissa é curadora de programação na Pinacoteca de São Paulo desde 2023. Entre 2017 e 2022 trabalhou como curadora assistente da Associação Cultural Videobrasil, onde integrou a equipe curatorial da 20˚ e 21˚ Bienal de Arte Contemporânea Sesc_Videobrasil, além de inúmeras programações internacionais e nacionais (exposições, residências artísticas, cursos, entre outros) para o Videobrasil. Desde 2015 trabalha como freelancer em curadoria e produção para diversas instituições e projetos, destacando-se colaborações com a Casa do Povo (2021), Associação Casa Azul / FLIP (2020, 2021, 2022), Sesc Pompéia (2018), Vila-Itororó (2017), Fundação Bienal de São Paulo (2016). Paralelamente, desenvolve seu trabalho autoral com o Coletivo Foi à Feira, pesquisando e propondo ações e projetos que atuem nas interseções entre artes visuais, memória e cidade.